Directamente do baú

"New York" (1989)

«This album was recorded and mixed at Media Sound, Studio B, N.Y.C., in essentially the order you have here. It's meant to be listened to in one 58 minute (14 songs!) sitting as though it were a book or a movie» - Lou Reed.

Sempre ligado à sua cidade, só no final dos anos 80 é que Lou Reed dedica um disco a New York. 14 histórias e fábulas urbanas.

Numa visita a uma grande superfície comercial ali para os lados do Porto, o meu irmão mostrava-me a sua última conquista: «Este é o Lou Reed...», disse-me enquanto me mostrava o vinil do "New York".
Eu tinha 12 ou 13 anos e não percebi nada do que ele me estava a dizer. O pouco inglês que eu sabia tinha-me sido ensinado pelos filmes, pelo Bruce Springsteen e pelo Bob Dylan. Não o sabia, mas estava a dias de juntar o Lou Reed à lista de "professores".
O que eu não atingi foi que um disco como "New York" (com as histórias imbricadas, o sarcasmo e a "bílis na língua" típicos de Lou Reed) é imperceptível para um puto de 12 ou 13 anos que havia nascido, vivia e crescia numa pequena terra do Norte de Portugal.

O som é cru. Temos duas guitarras, um baixo e uma bateria - ponto. Não abundam arranjos musicais fascinantes, só o velho mote de Dylan «...a red guitar, three chords and the truth» - pelo menos, a verdade de Lou Reed.


Dirty Blvd.

E são mesmo as palavras que sobressaem. Há de tudo em "New York".
Uma história de amor nas franjas da sociedade - com traficantes de droga e gangs armados em Romeo Had Juliette - em três minutos. Uma descrição agridoce e comovente do desfile do Halloween de Greenwich Village, para doentes de SIDA, em Halloween Parade. Em Dirty Blvd., vamos conhecer Pedro, que vive num hotel merdoso com 9 irmãos à sua conta, instintos parricidas originados nas cargas de pancada que leva por estar demasiado cansado para pedir dinheiro nas ruas e a falta de opções que faz com que o sonho passe por ser "dealer" ou, muito mais simples para uma criança como ele, olhar para o céu, contar até 3 e voar dali para fora.
Endless Cycle é uma peça sobre o ciclo interminável da violência que passa entre gerações como se de doença hereditária se tratasse. Um homem que luta contra a herança de violência e abuso de drogas. Do outro lado, uma mulher que se debate com sua própria herança de violência e alcoolismo. O remate de Reed:
«(...)
The man if he marries will batter his child
And he'll have endless excuses
The woman sadly will do much the same
Thinking that it's right and it's proper.
Better than their mommy and their daddy did
Better than the childhood that they suffered
The truth is they're happier when they're in pain
In fact that's why they got married
».

O repto para a mudança de There Is No Time é seguido de um retrato impressionante, fabuloso, duríssimo mas cómico, da América e dos americanos, à laia da sua indiferença perante as questões ambientais, em Last Great American Whale (com a Velvet Underground "Moe" Tucker na percussão):
«(...)
Americans don't care to much for beauty
They'll shit in a river, dump battery acid in a stream
They'll watch dead rats wash up on the beach
and complaint if they can't swim (...)».

A seguir, Lou Reed compila uma série de conselhos "preciosos" a dar a um filho que venha a gerar. Adivinham os que acharam que o cinismo e o cepticismo abundam na jazzy Beggining of a Great Adventure, que fecha o lado A do disco.

Last Great American Whale
Beggining of a Great Adventure

O niilismo é o ponto forte da faixa que abre o Lado B, Busload of Faith, segundo a qual não se pode contar com a família, amigos, princípios e fins, deus, inteligência, mas apenas e só com a crueldade, com o pior e com uma enorme dose de fé para nos aguentarmos.
Sick Of You tem como alvo a sociedade e a política: a nova-iorquina e, depois, a de todos os EUA. A violência - em especial, a racial - é o tema de Hold On.
A política, agora aliada à religião, é-nos servida amarga em Good Evening, Mr. Waldheim. Kurt Waldheim havia sido Secretário-Geral da ONU entre 1972 e 1982 e, naquela altura, desempenhava o cargo de Presidente da Áustria (1986-1992). Era conotado como tendo ideias anti-semitas e persona non grata nos Estados Unidos. Logo na primeira frase, Reed fala do que ele e o Papa tinham em comum... A seguir, os focos vão para o Rev. Jesse Jackson (também ele com gaffes sobre judeus e ligações a Louis Farrakhan, líder da organização social e política "Nation of Islam") e a OLP.
Xmas in February é a história de Sam, um veterano do Vietname, da sua alienação face à sociedade e do alheamento desta para com ele.
Em Strawman, Lou Reed dispara em todas as direcções, dos excessos da indústria cinematográfica a Michael Jackson, do programa espacial americano ao Presidente e na futura colheita amarga do que a sociedade americana estava a semear.

O disco acaba com um off-topic em regime experimental, (The Last Temptation of The) Dime Store Mistery, dedicado ao recém falecido Andy Warhol, em mais um excelente texto. Mais uma vez, com a percussão de "Moe" Tucker.

Busload of Faith
Dime Store Mistery

Esta última música acaba por fazer a ponte com o trabalho seguinte, a meias com John Cale, "Songs For Drella".

Muito fica por dizer sobre "New York", sobre a Statue of Bigotry a que Lou Reed se refere em duas alturas diferentes do disco, sobre a desconfiança da própria mãe, sobre o "não acreditar em nada do que se ouve e só em metade do que se vê"...
O melhor mesmo é ouvirem e lerem, de um só "gole", em 58 minutos.
publicado por Olavo Lüpia às 02:21 | link do post | comentar